quarta-feira, 6 de junho de 2007

SERÁ QUE A DOR DOS MCCANN MERECE TRATAMENTO VIP?

É uma pergunta insistente, que se tem vindo a insinuar perante os meios colocados à disposição da família McCann: porquê tantos privilégios, quando outros na mesma situação tiveram tão poucos? Porque há-de Maddie ser tratada de forma diferente de dezenas de crianças que desaparecem todos os anos em Portugal? A recompensa por uma informação relevante já ascende aos quatro milhões de euros; o Fundo Madeleine, para ajudar nas despesas do casal, superou os 500 mil; um milionário inglês colocou à disposição dos pais um jacto privado; o governo britânico enviou-lhes um porta-voz; o papa Bento XVI concedeu-lhes uma audiência. Afinal, o que há de diferente na dor dos McCann para ela merecer tratamento VIP?

A seguir a este raciocínio vem a análise sociológica. Tudo isto só acontece porque (1) Maddie é loira e de olhos azulados, (2) um anjinho fotogénico com (3) pais que são médicos (4) britânicos, e que estavam de (5) férias no Algarve. Segundo esta teoria, é só quando se faz a conta, de 1 a 5, que o frenesim mediático em torno na criança e a comoção pública que ela gerou encontram a definitiva explicação. Certo? Certíssimo em termos da mecânica da coisa. Mas completamente errado em termos humanos.

Os McCann são católicos e há nos Evangelhos uma passagem chamada Parábola dos Trabalhadores da Vinha (Mateus 20, para quem ainda tiver Bíblia em casa). Em versão adaptada a tempos laicos: um homem saiu cedo para contratar trabalhadores para a vindima. Encontrou uns pelas oito da manhã e combinou pagar-lhes 50 euros pelo dia de trabalho. Contratou outros às 11, uns às duas da tarde, e ainda mais alguns às cinco. Acabado o dia de trabalho, começou a pagar-lhes - e a todos, quer tivessem trabalhado uma ou dez horas, pagou a mesma quantia: 50 euros. Os que tinham estado a trabalhar desde manhã não acharam graça e começaram a protestar: então nós andámos a bulir o dia todo e tu pagas-nos o mesmo que aos que só trabalharam uma hora? O homem respondeu: "Amigo, em nada te prejudico, não combinámos 50 euros? Toma o que é teu e vai. Porque há-de o teu olho ser mau por eu ser bom?"

Eis uma pergunta que ecoa desde as profundezas dos tempos: porque havemos de ter inveja dos privilégios dos outros? O mal não é que os pais de Maddie tenham este tipo de tratamento - o mal é outros não o terem. Não são eles que devem optar pela resignação pobrezinha; são os outros que deveriam ter idêntica capacidade para impor a sua presença. A luta dos McCann é dupla: contra o desaparecimento da filha do seu quarto de hotel, e contra o desaparecimento da filha da casa de todos nós. Eles sabem que a melhor forma de encontrar Maddie é mantê-la na agenda mediática. E essa clareza de pensamento vale mais do que mil lágrimas derramadas.


João Miguel Tavares, in Diário de Notícias

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