terça-feira, 10 de julho de 2007

Uma crónica sobre bandejas e restaurantes "self-service"

Mais uma artigo de João Miguel Tavares, in DN. Porquê? Porque eu gosto =P

No outro dia fui almoçar aos Armazéns do Chiado e naquela zona onde o povo se senta com uma bandeja mal lavada para comer em dez minutos havia um cartaz que dizia: "Durante a hora de almoço, sirva-se primeiro, sente-se depois." Acreditem: vi um arco-íris nascer entre os crepes e os hambúrgueres. "Sirva-se primeiro, sente-se depois" - durante anos sonhei em esfregar estas palavras na cara de todos aqueles que em restaurantes de self-service e nas áreas de alimentação dos centros comerciais acampam nas mesas a guardar o seu lugarzinho, enquanto os dedicados acompanhantes vão para as filas da comida aviar o farnel. OK, eu sei que existe sida em África. Milhões a morrer à fome. Calotes polares a derreter. E que o nosso Governo chibata funcionários públicos. Mas aqueles minúsculos gestos de incivilidade têm uma capacidade espantosa de me tirar do sério. Ficar a marcar mesa enquanto gente de bandeja na mão espera por um lugar para se sentar parece-me a prova definitiva de que Rousseau estava enganado: nós somos muito mais selvagens do que bons.

Picuinhice? É melhor não desvalorizar o poder triturador do quotidiano. Ser enganado no troco ao pagar as beringelas pode ser chato. Esbarrar com o automóvel da sogra na rotunda do Marquês pode ser muito chato. Mas essas são chatices acidentais - um concentrado de aborrecimento. Agora, as chatices repetitivas, inevitáveis, insidiosas são aquelas que nos consomem por dentro e que daqui a cinco, dez, vinte anos nos farão saltar a tampa - as pessoas à nossa volta dirão "olha, passou-se", mas só porque desconhecem o histórico de recalcamentos. Eu tenho esse problema com as mesas dos self-service. Cada vez que vou ao Colombo ou ao McDonald's e vejo a dona Maria abancada com os sacos das compras enquanto o sr. Manuel foi buscar a merenda, há um violento homicida a querer soltar-se dentro de mim. Já me aconteceu chegar, comer e partir e a dona Maria ainda estar à espera do regresso do sr. Manuel, ocupando a sua mesa com ar de conquistadora, como se aquele bocado de mármore fosse território azteca e ela o Fernão Cortez. Mas porquê tanta sofreguidão? Se ninguém guardasse mesas, muitos mais comeriam durante o mesmo intervalo de tempo (é matemática pura). Mas, como 98% dos portugueses correm para os lugares vazios como se fossem o derradeiro oásis antes do deserto, os que se mantêm abraçados à sua ética parola (como eu) fazem figura de urso e ficam horas em pé, à espera que alguém parta. Daí a minha esperança naquele cartaz e na sua proliferação. É o meu pequenino 25 de Abril. Até já sonho com a dona Maria dentro de uma chaimite, a caminho do Brasil. Foram muitos anos de opressão.

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