sábado, 26 de julho de 2008

Fernando Pessa - "E esta, hein?"


Foi o jornalista mais conceituado de todos os tempos e também o mais velho de que há memória. Sempre atento, racional e crítico para com o país. Todos os adjectivos seriam poucos para descrever aquele que muitos ainda hoje consideram um dos grandes nomes da cultura e uma das maiores referências do jornalismo português. Refiro-me, claro, a Fernando Pessa, que durante a sua longa vida se destacou por ser um dos pioneiros da Emissora Nacional, por ter estado ao serviço da BBC, em Londres, durante a II Guerra Mundial, pela sua participação na primeira emissão da RTP, em 1957, mas também pelo seu carácter intervencionista e notável sentido de humor. Quem é que não se recorda da célebre expressão: “E esta, hein?”?

Em 1934, Fernando Pessa, já com 32 anos, decidiu candidatar-se por graça, como admitiu mais tarde, a um concurso para locutores da então recém-criada Emissora Nacional, tendo alcançado o segundo lugar. Rapidamente deu nas vistas e o seu talento foi reconhecido, de tal forma que, quatro anos mais tarde, e como o próprio explicava, “veio um senhor da BBC (British Broadcasting Corporation) que [o] convidou para ir para Londres, pois tinham-lhe dito que havia aí um rapazinho com muito jeito”. Foi na qualidade de repórter que fez a cobertura da guerra e enfrentou as bombas que Hitler lançava sobre Londres, mas, como o próprio confessou, passou grande uma parte da guerra a dormir e nem se deu conta daquelas que caíram sobre o prédio onde se encontrava. Obediente, mas nunca submisso, Pessa procurou sempre ler nas entrelinhas aquilo que anotava no papel, ainda que a censura estivesse alerta, sempre pronta a fazer cortes (muitas vezes sem sentido).

Em 1947, terminada a Guerra, Pessa tencionava regressar a Portugal e retomar as suas funções na Emissora Nacional. Contudo, como o próprio ironicamente explicava, “as politiquices cá da terra não [o] deixaram reentrar já profissionalizado”.

O regresso aos meios de comunicação tardou em chegar, mas aconteceu, finalmente, a 7 de Março de 1957, quando Pessa se encarregou da abertura da primeira emissão da RTP, directamente da Feira Popular de Lisboa, e apresentou aqueles que iriam garantir as emissões: Vera Lagoa, Maria Helena Varela, Fialho Gouveia, entre outros. Podemos, assim, dizer que, pela primeira vez, aquela voz da rádio tão acarinhada pelo público teve, finalmente, um rosto, que não tardou a tornar-se popular.

Seguiram-se inúmeras reportagens e entrevistas ao serviço da RTP, e Pessa denunciou tudo quanto era estátuas partidas, casas vandalizadas com graffiti, estradas com buracos, passadeiras com marcações esbatidas ou sinais mal colocados e mostrou, durante anos, os seus bilhetes postais aos portugueses. Uma das suas reportagens mais caricatas dava conta da existência de uma Torre de Pelé em Lisboa (Torre de Belém), isto porque algumas letras da placa indicadora já não estavam perceptíveis.

Pessa recorria, frequentemente, à expressão “E esta, hein?” para evitar os palavrões ou as expressões menos delicadas que tantas vezes lhe apetecia pronunciar quando se confrontava com situações desagradáveis que se viviam no país. O próprio admitiu que gostava que o recordassem pelo carácter intervencionista dos trabalhos que levou a cabo.

Todavia, é importante referir que nem o facto de, muito provavelmente, ter sido um dos maiores comunicadores do século XX trouxe estabilidade à sua vida, tendo em conta que só em 1976, já com 74 anos, é que foi admitido nos quadros da RTP, pelo que podemos aqui perceber a enorme influência do regime até ao 25 de Abril de 1974. Ainda assim, a sua passagem pela “Estação Pública” traz boas lembranças àqueles que com ele tiveram a oportunidade de trabalhar e que por ele nutriam uma enorme admiração.

A vida deste homem foi um manacial sem fim, mas parecia que nem os anos nem a desgastante profissão que desempenhou ao longo da sua vida deixavam marcas. Aquilo que o mantinha vivo era, como se percebia pela suas palavras, uma ânsia frenética de desafiar os anos, realizar novos projectos e partir com a certeza de que havia contribuído para “ajudar a nossa terra a seguir em frente”. Talvez para isso precisasse de viver outra vida, mas projectos não lhe faltariam, com certeza. A sua vitalidade acompanhou-o sempre, pelo que conseguiu manter-se no activo até aos 93 anos de idade, tendo, posteriormente, mantido a condição de colaborador.

A sua forma de estar, que tantas simpatias conquistou, a sua saúde mental, a sua piada fácil e o seu espírito jovial acompanharam-no até aos últimos momentos de vida. O próprio Fernando Pessa não se cansava de afirmar: “velhos, como se diz, são os os trapos e [eu] ainda não tenho cara de trapo!”. No fundo, acabou por morrer novo, tendo em conta que para ele aquele um terço da sua vida que passava a dormir não contava para a idade. Seria este o segredo de Fernando Pessa para chegar aos 100 anos com uma lucidez invejável?

Precisamente 14 dias após ter completado 100 anos no dia 15 de Abril de 2002 Fernando Pessa deixou-nos, mas em todos nós ficou a memória de um homem simples e humilde, que pela sua determinação, irreverência e percurso jornalístico, ficou conhecido pela meritória designação de “Decano Mundial dos Jornalistas” (como lhe chamou a Agence France–Press).

E esta, hein?
*Excertos da biografia que fiz sobre o Grande Fernando Pessa

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